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Carta de Privilégio de 1483

Edição da Carta de Privilégio de 1483...

 

Edição da Carta de Privilégio de 1483

O nascimento de Almeirim como comunidade organizada no novo país lusitano, está indissoluvelmente ligado à decisão de construir um novo Paço Real. A decisão de D. João I visava claramente responder às necessidades de veraneio, caça e montaria que a Corte exercitava na Coutada de Almeirim.

 

A construção das novas casas reais, que se deve ter iniciado nos primeiros anos do séc.XV, visto que já em 1423 existem documentos régios datados de Almeirim, trouxe, certamente, uma inusitada movimentação à zona e obrigou ao estabelecimento de vário tipo de indivíduos ligados à construção e manutenção dos novos equipamentos. Por outro lado, o estabelecimento, por largos períodos, da Corte criava também oportunidades de "negócio" para os que aqui se pretendessem fixar. As obras de secagem do pântano que dominava o território do futuro Paço criou igualmente condições para o desenvolvimento da agricultura e para a fixação humana.

 

A pouco e pouco forma-se uma comunidade composta por agricultores, artífices, comerciantes que vive essencialmente na dependência dos Paços e da Corte para satisfazer as suas necessidades. Mas, também nobres, profissionais de prestígio (médicos, etc.) vão paulatinamente ganhando interesse por possuir propriedades na zona. Movem-nos razões de carácter económico, de prestígio, de apropriação de novas concessões reais e a necessidade de proximidade do poder.

 

O crescimento desta comunidade verificou-se de forma muito lenta, o que é claramente comprovado se tivermos em linha de conta que no primeiro recenseamento nacional de 1527, Almeirim conta apenas com 360 habitantes.

 

Apesar deste movimento lento, é a esta pequena comunidade que em 1483 o rei D.João II concede a Carta de Privilégio que hoje se edita. Aliás, a necessidade de um certo crescimento populacional e de um melhor aproveitamento da terra são motivos expressamente invocados no preâmbulo da Carta para justificar a sua concessão. A corte sentiria, desta forma, a necessidade de desenvolver uma comunidade essencial para assegurar a sua permanência nos Paços Reais.

 

Mas, a concessão de privilégios por um monarca com uma concepção e uma prática centralizadora do poder, bem conhecido pelas medidas radicais contra os que contra ele ensaiaram alguma oposição, não parece crível apenas como resultado do crescimento desta comunidade, nem da necessidade de povoamento e crescimento económico.

Se, de facto, a obtenção de privilégios, independentemente da sua extensão e características, que analisaremos mais à frente, representa uma certa força socioeconómica desta população e um anseio de se autonomizar da "excessiva" dependência face ao Paço Real= Poder Real, a concordância do monarca joanino deverá entender-se, julgamos, no contexto da necessidade de contrabalançar o poder das classes privilegiadas (Nobreza e Clero) que conhecem, durante o consulado de Afonso V, um extraordinário desenvolvimento, à custa do património da coroa e das prerrogativas do poder real(1). A verificação desta hipótese em Almeirim obrigará a uma investigação mais profunda, sobretudo para saber se no reinado anterior D. Afonso V alienou partes significativas do património e do poder nesta região.

 

No entanto, e a este propósito, não colhe a justificação, avançada por alguns, de que a concessão da Carta de Privilégio seria o resultado de uma particular atenção e prazer por Almeirim, por parte do monarca.

 

A fórmula "Carta de Privilégio" concedida a esta comunidade é também o resultado visível das concepções do poder vigentes. Inferior à concessão de um foral, verificaremos que o número e a extensão dos privilégios não é de monta a autonomizar completamente esta comunidade e possibilitar-lhe meios importantes para o seu auto-crescimento. Não obstante, temos de entrar em linha de conta com o facto de o modelo da concessão de forais estar já esgotado na sociedade portuguesa desta época, não sendo, portanto, de estranhar completamente a sua não utilização.
Desta forma, parecem encaixar-se logicamente as peças do "puzzle" que permitem explicar a concessão destes privilégios. Vejamos, então, o que realmente D. João II concede aos habitantes de Almeirim.

 

O primeiro conjunto de privilégios mais significativo é o de natureza fiscal, isentando os moradores de alguns impostos de carácter extraordinário: pedidos, fintas, talhas, serviços. Os pedidos constituíam um imposto extraordinário lançado, após a aprovação em Cortes, quando o Estado não tinha possibilidade de fazer face a algumas despesas. Eram várias as circunstâncias que originavam estes pedidos: casamentos reais, conflitos armados, viagens de exploração/conquista, ou mesmo momentos em que o tesouro real se encontrava mais depauperado. Os serviços traduziam-se em variadíssimos encargos em dinheiro, trabalho ou géneros a que os povos estavam obrigados, mas com carácter extraordinário, tal como os pedidos. As fintas e as talhas são impostos da mesma natureza extraordinária, mas desta vez a nível concelhio, usados essencialmente para suprir necessidades financeiras por motivo de obras municipais. Do pagamento das fintas estavam isentos, normalmente, os fidalgos, os cavaleiros, os escudeiros, os doutores, os bacharéis, os licenciados, os juízes, os vereadores, os procuradores do concelho e os muito pobres.

 

A isenção da aposentadoria, obrigação dos povos de darem, eventualmente, guarida e sustentarem os privilegiados que passavam ou estacionavam nas localidades, constitui um significativo privilégio para esta população, sobretudo se pensarmos que Almeirim era essencialmente para os privilegiados um local de habitação temporária, e se tivermos em conta o verdadeiro arsenal de "indivíduos" que acompanhavam a Corte: nobres ao serviço do rei, funcionários administrativos, judiciais, médicos, etc., etc. A importância e o peso deste tipo de obrigação para as populações está, aliás, implícita na minuciosa descrição que dela se faz no documento: os almeirinenses estavam claramente dispensados de dar guarida em suas casas e cavalariças, de dar "roupa de cama, alfaias de casa, palha, cevada, lenha, galinhas, gados, nem outras coisas de seu contra suas vontades", bem como animais. Embora sendo uma obrigação de características eminentemente medievais, a aposentadoria constituía, ainda neste final do século XV, um grave encargo para os povos, razão pela qual, nas cortes de 1481-82, os povos pedem ao rei para reduzir o séquito que o acompanhava, pelas despesas que causava às populações nos locais para onde o monarca se deslocava. Esta isenção só tinha uma excepção e de abrangência limitada: os almeirinenses do século XV continuavam com a obrigação de aposentadoria para a família real.

 

No domínio ainda do que podemos designar por privilégios de carácter sócio-económico, D.João II resolve ainda isentar os habitantes da obrigação de serem tutores de menores fora da vila, de acompanharem presos, de transportarem dinheiro, de servirem em pontes e fontes fora da vila. Eis um conjunto de obrigações que tornariam a vida das populações um pouco mais pesada e que, desta forma, aligeiram o fardo impressionante dos impostos e serviços que caracterizavam a vida da burguesia e das classes populares neste final da Idade Média.

 

Um outro importante privilégio concedido aos habitantes é a isenção de participarem no que podemos designar como o pré-exército português: os besteiros do conto. Os besteiros eram soldados, sobretudo, de infantaria, cuja principal arma era a besta, sendo recrutados obrigatoriamente em cada concelho. Era da sua responsabilidade o armamento e roupas, pelo que, naturalmente, eram escolhidos entre os que possuíam alguns rendimentos. Embora não saibamos, hoje, o número de besteiros que cada concelho deveria fornecer nem o período de serviço obrigatório, não é difícil imaginar as dificuldades por que passavam as famílias dos que eram escolhidos. Desta forma, podemos avaliar da importância deste privilégio.

 

A relevância dos privilégios aqui concedidos, sobretudo se comparados com os concedidos anteriormente em documentos de uma natureza muito próxima - os Forais - é pouco significativa. Excluindo a isenção de aposentadoria e de participação nos besteiros do conto, o outro conjunto de privilégios representa uma parte muito reduzida do conjunto de impostos/obrigações que os povos deveriam satisfazer quer em relação ao Estado, à Coroa ou aos grupos privilegiados.
De qualquer forma, esta Carta de Privilégios permitiu, sobretudo, a autonomia relativa desta comunidade face ao poder real, condição essencial para o seu desenvolvimento. É após esta concessão que se estruturam os órgãos de governo local e a comunidade impulsiona o seu crescimento.
 

 


1483, Maio, 21, Avis - D.João concede vários privilégios aos habitantes de Almeirim
.Chancelaria de D.João Ii, Livº 26, fol.73 v.
.Leitura Nova, Livº 6 da Estremadura

Os moradores da villa d'Almeirim. Privillégio per que sam escusos de pagar em pedidos, peitas, fintas, talhas, serviços.
Dom João e cetera. A quantos[2] esta carta virem fazemos saber[3] que, consiirando nos como el[4] Rei dom João meu bis avô que Deus[5] haja edificou nossa vila e paços d'Almeirim[6] E como isso mesmo ele e El Rei dom Eduar[7]te meu avô e El Rei meu senhor e padre[8] cujas almas Deus haja sempre folguaram de[9] terem os ditos paços mui bem corregidos[10] e a dita vila bem povorada pera quando[11] a ella fossem seus oficiaaes e alguus corte[12]saãos acharem pousadas em que podessem [13] seer apousentados. E desejando nos em esta[14] parte seguirmos o que eles seguiram e ta[15]mbém por que nosso desejo e vontade sempre[16] foi e é nos em esto conformarmos com[17] suas vontades e por a dita villa ser milhor[18] povorada e aproveitada a terra della por lhe[19] teermos afeição e em ela muito nos[20] desenfadarmos e querendo fazer graça[21] e merçe aos moradores dela que ora sam[22], e ao diante per os tempos forem.
Tee[23]mos por bem e queremos que daqui em[24] diante sejam privilegiados e escusados[25] de não pagarem em nenhuus nossos pedidos[26], peitas, fintas, talhas, serviços enprestidos(?)[27] que por nos daqui em diante forem lança[28]dos per qualquer guisa e maneira que[29] seja, nem vão com presos nem com dinhei[30]ros, nem sejam tutores, nem curadores de[31] nenhuuãs pessoas fora da dita vila e ter[32]mo della posto que as tutorias sejam lidi[33]mas, nem sirvam em pontes nem em fon[34]tes senam naquellas que se ouverem de fa[35]zer na dita villa e seu termo, nem sejam[36] isso mesmo postos por besteiros do conto.[37]Outrossi queremos e mandamos[38] que nenhuua pessoa ou pessoas de qual[39] quer estado e condiçam que seja não pousen[40] com eles em suas casas de morada, adeguas[41] nem cavalariças nem lhe tomem deles [42] roupa de cama, alfaias de casa, palha, ce[43]vada, lenha, galinhas, gaados nem outras[44] nenhuuãs cousas de seu contra suas von[45]tades, nem lhes tomem suas bestas de sella[46] nem d'albarda pera nehuuãs carreguas, [47] salvo pera as nossas e da Rainha e do[48] princípe meus sobre todos muito amados[49] e prezados mulher e filho, pera quando nos[50] e a Rainha e o princípe formos todos ou ca[51]da huu de nos na dita villa em tam ser[52]am escusados e serviram com apousentado[53]ria, que segundo nossa hordenança sam or[54]denadas.
E porem mandamos a todo[55]los nossos Corregedores, Juizes e justiças,[56] officiaaes e pessoas a que o conhecimento des[57]to pertencer per qual quer guisa que seja [58] e esta nossa carta for mostrada que hajam da[59]qui em diante os moradores em a dita vila[60] d' Almeirim por escusados e Relevados de to[61]dalas coussas sobreditas e cada huua del[62]as. E os não costrangam nem mandem[63] costranger pera elo em alguua maneira[64] por quanto assi é nossa merçe.
Dada em[65] a vila d'Avis a xxi de maio. Pedr'allvarez[66] a fez. de mil iiiiº lxxx iii (1483). E eu afonsso gar[67]cees sacretario do dito senhor a fiz escrepver[68] per seu mandado = sobescrepvi.

 



Nota à transcrição:

Tendo em conta que esta transcrição tem como objectivo chegar ao grande público, foram utilizados os seguintes critérios: modernizou-se a pontuação, maiúsculas e minúsculas e a ortografia, embora mantendo o mais possível a fonética. Usou-se o u/v e i/j respectivamente quando com valor vocálico ou consonântico. Modernizou-se também a acentuação. As consoantes geminadas não foram mantidas. Os números interpolados indicam as linhas do original.

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